Antonio Albuquerque
Dezembro de 2015
Maité
Passava das quatro horas da manhã,
ainda escuro, eu caminhava protegido pelas marquises dos velhos casarões da
cidade histórica da velha Manaus. Cidade marcada pelos prédios antigos do
século 19, tempo áureo da borracha. Mesmo sob as marquises minha roupa encharcava
pela torrencial chuva. Tinha pressa, queria chegar ao Mercado Adolpho Lisboa. Na
escadaria que dá acesso ao porto ouvia a voz forte dos barqueiros oferecendo
bilhetes de viagem para os mais diversos lugares da região. Diante de muita agitação,
ainda não sabia para onde viajaria, mas pretendia me afastar do rebuliço da
cidade. Há muito eu sentia a necessidade de me isolar por algum tempo num lugar
tranquilo onde pudesse pensar distante da cidade. Lia-se numa placa de papelão;
barcos para o baixo Amazonas, Solimões, Rio Negro e outros nomes especificando
lugares. — A que horas sai o barco para
Barcelos? Perguntei. — Sete horas, respondeu um moço segurando um papel. Seis
horas, redes atadas no espaçoso convés da embarcação formava um cenário único
dos navegantes da Amazônia. Agasalhei minhas coisas embaixo da rede, escolhendo
uma boa posição para apreciar a paisagem às margens do Caudaloso Rio Negro. O
barco navegava e a brisa fresca da manhã acarinhava meu rosto assustado pela
aventura ora iniciada. Deitado na rede admirava a margem do rio e o
distanciamento da cidade, sentindo incontida saudade. Creio ser esse o
sentimento de todos que deixam a cidade e são acolhidas pelas águas, florestas
e a linguagem cabocla que nos aproxima da natureza nos tornando simples e solidários.
Passava pela minha cabeça um turbilhão de pensamentos, no entanto o mais
importante era a viagem que me trazia um sentimento prazeroso de liberdade. Queria
observar a paisagem da floresta, o movimento das águas, a revoada dos
passarinhos, macacos e as milenares tradições ribeirinhas. Distante da cidade penetrei
na magia encantadora da floresta. Ao meu lado viajava uma bela jovem índia que
chamou minha atenção, ela me olhou com um sorriso encantador, seus olhos tinham
o brilho de uma esmeralda, revelando um ser diferente que me fez mergulhar em seus
encantos, e sua meiguice desnudou seu interior.
— Bom dia, disse a moça. Bom dia, faremos uma
boa viagem à Barcelos, respondi. — Certamente,
mas desembarcarei antes de chegar à cidade para participar de uma celebração. Se
quiser me acompanhar podemos ir juntos. Ao regressarmos, embarcaremos nesse
mesmo barco de volta à Manaus, concluiu. Pensarei, acho a ideia interessante,
mas nem sei o seu nome?
— Meu nome é Maité. Meus ancestrais
pertenciam a uma nação que existiu nessa região e que falavam Nheengatu, donde
se originou meu nome, conservado por milhares de anos, concluiu. A floresta é um mundo muito diferente do que
conhecemos, e eu quando nela penetro examino miudamente tudo ao redor,
observando os mistérios, pelo menos os que eu conheço, pois dentro dela sempre
sou um estreante, mas aceitei o convite de Maité. Sim, irei com você, e juntos
participaremos da celebração. — Será uma honra, respondeu a bela jovem.
Desembarcamos e no beiradão permanecemos observando
o barco se afastar até desaparecer numa curva do caudaloso rio. Tão curta a
viagem e eu já sentia saudade do aconchego no convés da embarcação. — Prepare-se para uma surpresa, sorrindo disse
Maité. Que surpresa? Perguntei. ─ Boa. Se revelasse não seria surpresa, sorrindo
respondeu. Seguimos a trilha caminhando em fila indiana, conversando sobre
coisas da floresta, o que muito me agradava. Após uma hora de caminhada senti
cansaço, e ela sem olhar para trás perguntou: — Quer que eu lhe conduza nos
braços? Você não tem resistência, não é um caboclo! Não precisa, vou me
recompor, respondi. Ela sorriu sem olhar para trás. Maité sempre caminhando à
frente com passos leves tal o pouso duma garça, e com naturalidade
mostrava graça e sensualidade, o movimento sensual dos seus quadris lembrava o bambolear
do voo dum gavião. Ela conhecia a
floresta e caminhava com estrema leveza, parecendo não tocar nas folhas espalhadas
pela terra molhada. Paramos um instante e ela chamou minha atenção para pássaros
pousados no alto das árvores. Eram belíssimos e não se afastaram com a nossa
intrusa presença. A caminhada continuou floresta adentro e já me sentia leve tal
a brisa da manhã, certamente refeito pelo ar puro da floresta, nenhum
pensamento me conduzia à efervescente cidade. Fazíamos rápidas paradas comentando
coisas da natureza e Maité sempre tinha algo surpreendente a me revelar. Sentamos-nos
a beira de um igapó entre sororocas e palmeiras ouvindo o rumorejar da água mimando
os peixinhos coloridos num encantamento que só a floresta nos revela. No alto
de uma samaúma um bem-te-vi cantando anunciava nossa presença, à tarde chegou
mansa e calma, e por um longo tempo permanecemos em silêncio ou falando
baixinho para não romper o sossego da silenciosa mata. O entardecer e a brisa suave
da noite acalentou meu ser conduzindo meus pensamentos a um mundo encantado,
num clarão eterno de luz fecunda da lua movedora, vendo o céu atapetado de
astros e estrelas. A voz de Maité parecia ecoar no universo quando me pediu
para fechar os olhos e enxergar com a mente. Uma radiante manhã surgiu num
sorriso de alegria, e num ritual de cânticos de prazer, milhares de pessoas reverenciavam
sua rainha. No centro formou-se um belo arco-íris, e entre suas cores enxerguei
uma mulher. Nem vi o tempo passar. A mulher era Maité, no entanto ao meu lado
com imensa alegria sorria. Feliz, sentindo um clarão dentro da alma, com Maité caminhei
na direção do indômito Rio de águas negras convicto da existência dos grandes
mistérios da natureza. Com os olhos pejados de lágrimas e o coração banhado de
luz e sonhos, tive a certeza que nem tudo é matéria densa como imaginamos. Maité
é originária de uma antiquíssima civilização que ali existiu a mais de seis mil
anos. Sei que entre a terra e o céu existem infinitos mistérios e moradas do
Grande Arquiteto do Universo.
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