quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Misteriosa Corrida


Misteriosa Corrida

Cavalos-marinhos em disparada deslocavam-se com elegância e ligeireza sobre ondas gigantes e tempestuosas num mar revolto. O vento soprava em direções contrárias formando imensos redemoinhos. Relâmpagos e trovões rasgavam o céu em parte encoberto por nuvens escuras mostrando acima delas, estrelas brilhantes num espetáculo amedrontador, mas de grande beleza.
─ Para que pressa! O mar pode conduzi-los, é só deixar-se levar pelo movimento das ondas. Vitor falava para si.
Os belos e indomáveis cavalos a cada instante sobrepunham-se às ondas com extrema leveza prosseguindo sua estranha corrida. No cume duma gigantesca onda Massumi gesticulava e, gritando afirmava que o mercado de ações  havia despencado e que as pessoas tivessem cuidado com investimentos  financeiros.
A Lua escondia-se atrás  das imensas nuvens sobre a Baía de Guanabara. O mar agitado anunciava chuva  ao amanhecer. Vitor consultou o relógio; eram três horas da manhã e havia perdido o sono, precisava falar com Laura, chamou-a pelo telefone, ela não atendeu; certamente àquela hora dormia. Laura havia tido um dia árduo de trabalho na banca de advocacia na cidade de São Paulo, junto com seus sócios, Garcia e Marina. Impressionado, Vitor se lembrava do estranho sonho onde Massumi fazia referência ao mercado financeiro,  pois essa não era sua atividade.
 Em suas viagens ao mar, Vitor também se fazia acompanhar por Gonzalez, comandante habilidoso e  experiente, sempre disponível para velejar em companhia do seu bom amigo. Navegando, Vitor gostava do silêncio do mar; no horizonte enxergar o mar beijando o céu, o nascer e o pôr do sol e escutar o suave marulho das ondas no casco da embarcação. À noite precisava de alguém para conversar e ouvir histórias, e, aí Gonzalez contava suas aventuras nas longas viagens por diferentes oceanos, algumas vezes em companhia de Vitor que também recordava de inauditos acontecimentos nas viagens pelo  mar.
O telefone chamou. Era Laura.
─   Encontrei uma chamada sua! O que aconteceu?
─ Não consegui dormir, precisava lhe falar, tive novamente aquele sonho.
 Que sonho?
─  O sonho  da corrida de cavalos em alto-mar.
─  Novamente?  Indagou Laura.
─ Sim.
─ Acho que você está ficando doido.
─ Doido por você.
─ Massumi apareceu no sonho!
─ Ele também está doido.
─ Chega Vitor, vá dormir. Bons sonhos. Logo estarei com você.
─ Cavalos em alto-mar! Sonhos... Era só o que me faltava! Disse Laura...
Vitor voltou para a cama, não conseguiu dormir e pensou em ler a Divina Comédia.
─ Aí sim, dormirei, pensou.
Não dormiu, se perguntando em silêncio!
─ Será que Dante Alighieri tinha insônia?
─ Não. Provavelmente era doido igualzinho a mim.
─ Será que Laura tem razão e eu sou doido mesmo? Ficou a pensar e dormiu.
Ao surgirem os primeiros raios de luz, levantou-se e foi ver o esplendor do sol nascer. Gaivotas sobrevoavam o mar. Navios rumavam para o oceano e Vitor imaginou para onde iriam! Sentiu saudade de suas longas viagens. Vitorioso nos negócios, nem tanto no amor. Após um divórcio de um casamento de dezessete anos ficou só. Sentia  solidão e o mar era seu refúgio. Tinha dois filhos, um casal de jovens que vivia com Raquel, sua ex-esposa e boa amiga. Embora, com eles tivesse um bom relacionamento, sentia solidão morando sozinho num apartamento na Avenida Atlântica em Copacabana.
Nos últimos anos Vitor limitava suas excursões pelo mar do Nordeste e sul do Brasil e raramente chegava ao Uruguai ou a Argentina. Em Santos no litoral paulista, numa dessas viagens conheceu Laura, uma mulher encantadora, e também, qual ele, fascinada pelo mar. Juntos planejavam fazer uma longa viagem pelo Caribe no seu veleiro, carinhosamente chamado de Caranguejo.
O telefone chamou; era Laura.
─ Vitor, eu ainda estou no escritório, somente chegarei amanhã às nove.
─ Sim, que jeito!
Mesmo a contra gosto, buscava a conformação. O que fazer!  Ela tinha  razão, primeiro o trabalho.
O eterno clarão do sol brilhava sobre o mar, num céu azul sem nuvens. A claridade penetrava por entre as frestas da cortina. Vitor acordou sentindo um cheirinho de café. Levantou-se e deparou-se com Laura.
─  Vitor, você dorme muito, cheguei as nove e, já são onze horas.
─   Abraçaram-se entre murmúrios.
─  Preparei um bom café.
─ Mas já está na hora do almoço!
─ Vamos tomar café, e depois almoçaremos no bodegão. Quero comer frutos do mar.
─ Tudo bem. As mulheres são mandonas.
─ O que você está falando?
─ Que você é linda...
─ Ah, sim.
─ Garcia e Marina vieram ao Rio só para lhe ver. Querem tratar de negócios e acham que chegou o momento de fazermos aquela sonhada viagem ao Caribe em seu veleiro.
─   Não vou, disse Vitor.
─ Não seja radical. Eles  são fascinados pelo mar,  bons amigos e companheiros de vigem. Ouça-os primeiro!
 ─ Garcia está doido, como vou poder sair do Rio, em férias?
─ Você anda sonhando muito. Isso não é um bom sinal.
─ É um bom sinal sim, o sonho é a força mágica da vida.
─ Concordo, mas pense no assunto.
─ Você sabe como é complicado eu sair de férias.
─   Eu sei, mas converse com eles.  Marina quer ir junto.
─ Eu também quero ir, quem sabe faremos um bom passeio!
─ Em sua companhia já dá para pensar no assunto.
─ Então vamos ver, eles são excelentes pessoas. Vamos pensar! Podemos tirar umas boas férias viajando juntos.
─   Já estou achando uma boa ideia.
─ Tem uma caixa de vinho na adega, veja se gosta. Cuidado, não beba todo de uma só vez...
─   Não sou pinguço, mas gostei do presente.
─   Então vamos juntos pensar no assunto?
─ Sim.
─ Garcia e Marina preferem viajar com poucos amigos, mas que sejam de confiança.
─ Eles têm razão.
Os casais encontraram-se para o almoço. Era domingo e foram ao restaurante Fígaro na lagoa e aproveitaram para falar sobre a viagem.
─ Vamos aproveitar o período mais quente do ano, será bom para todos, disse Garcia.
Não posso ficar dois meses fora do Rio de Janeiro, vocês bem sabem, disse Vitor.
─ Você pode administrar seus negócios de dentro do caranguejo, pois foi para isso que o equipou.
─  É verdade, disse Vitor.
─ Se não der certo, voltaremos em menos de dois meses.
─ Concordo, no entanto precisamos fazer um bom  planejamento.
Duas pessoas são indispensáveis nessa viagem, disse Marina.
Quem? Indagou Vitor.
─ Massumi e o capitão González.
─ Concordo, vou convidá-los, mas não quero saber de trabalho, especialmente a bordo do Caranguejo, pois ele é um espaço de lazer, disse Vitor.
─ Tudo bem comandante, você é quem manda, sorrindo respondeu Marina.
A viagem teria início em primeiro de fevereiro partindo do Rio de Janeiro com destino ao mar do Caribe. Visitariam  Cuba, Colômbia e Venezuela, retornando ao Brasil pela foz do rio Amazonas até a cidade de Manaus de onde alguns voltariam de avião para o Rio de Janeiro, e o capitão González conduziria o Caranguejo ao porto de origem. Alguns detalhes seriam lembrados nos dias seguintes, e durante a travessia que se estenderia por até sessenta dias.
Com ampla experiência em viagens marítimas, Vitor havia feito aquela rota diversas vezes e, embora estivesse afastado havia  alguns anos quando deixou o barco no estaleiro, não se distanciou  da navegação. Há muitos anos González era seu imediato, também fascinado pelo mar, sentia-se mais seguro embarcado do que em terra, conhecia as rotas marítimas havia mais de trinta anos e possuía experiência no mar do Caribe e nas Américas, onde enfrentou baixas temperaturas no Canadá e ciclones no oceano pacífico.
Massumi gostava de aventuras especialmente no mar. Nessa viagem seria responsável pela alimentação e bebidas, tarefa que desempenhava com imenso prazer. Laura gostava de  histórias do mar, especialmente  do Caribe. Era neta de espanhóis que imigraram para o Brasil na década de quarenta. Laura Era decidida, boa advogada e também fascinada pelo mar, a bordo de uma embarcação sentia-se em casa. Laura pensava escrever um livro relatando experiências em viagens anteriores por alguns continentes.
─ Em sete dias estaremos preparados para a viagem, afiançou Vitor.
Após uma semana trabalhando nos preparativos, no dia que antecedeu a viagem, logo cedinho o grupo se reuniu a bordo. Aquele dia serviria para examinarem a estrutura de muitas coisas que faziam parte daquele cruzeiro; combustível, mantimentos, bebidas e tantos outros acessórios, sendo que cada um cuidava do setor pelo qual ficara responsável, porque todos eles eram passageiros e tripulantes.
 Zarparam às seis horas numa linda manhã de sol contemplando a cidade maravilhosa. Com desenvoltura e determinação o capitão González segurava o leme e com habilidade comandava o Caranguejo.
─ Ele é um mestre nesse ofício e dirigindo-se ao capitão disse:
─ Velejaremos a noite em baixa velocidade porque não temos pressa. Massumi está preparando lagosta ao molho não sei de quê, é surpresa, peço que  todos estejam  à mesa na hora do jantar, será nossa primeira refeição nessa viagem. À noite, após o jantar haverá festa a bordo.
─ Certamente que sim, já vamos começar os preparativos, respondeu o capitão.
─ Quando chegarmos a Havana, vou me esbaldar, dançando salsa e bebendo rum jamaicano, vou parecer até um pirata ou corsário  da perna de pau, disse Garcia.
O entardecer em alto-mar é de uma beleza inefável, o sol se pondo com seus raios cor de fogo brilhando no céu e sua luz refletida na água. No horizonte infinito se forma um belo cenário qual uma tela pintada pela própria natureza. Diante de tanta grandeza, é quando nos sentimos do tamanho  de um grão de mostarda. O imponente veleiro navegava sobre um mar sereno quando Massumi veio comunicar que o jantar seria servido em meia hora.
─ Não consigo imaginar como seria essa viagem sem o Massumi! Disse Vitor.
─ É verdade, sou muito bom no que faço.
 Sorrindo Massumi dirigiu-se a adega e voltou  com uma garrafa na mão.
─ Esse camarada chinês quer nos embriagar, disse Garcia.
─ Não sou chinês, sou brasileiro, paulista, nascido em Perdizes, com muita satisfação.
Os dois abraçaram-se sorrindo. A viagem estava começando num clima de muita alegria.
─ González veio juntar-se ao grupo e avisar que havia automatizado o barco, agora navegava controlado pelo sistema automático de última geração que permitia a ausência do capitão na sala de comando.
─ Veja que maravilha a nova tecnologia, viajamos com toda segurança. Há alguns séculos os navios navegavam por estes mares guiados pelas estrelas e instrumentos rudimentares. Os espanhóis e portugueses, entre outros eram grandes navegadores, disse Garcia.
─ Nós, brasileiros devemos muito aos portugueses, pois com muita sabedoria e coragem desbravaram um imenso território formando o Brasil e, parabéns a nós também que o conservamos, embora tenhamos doado uma grande área de terra para os ingleses; a Guiana que outrora era nosso território. Nunca deveríamos ter cedido parte do nosso Brasil, poderíamos  ter tido mais cautela especialmente com os colonizadores ingleses, sempre ávidos pela terra dos outros, além das suas fronteiras, mas  mesmo assim possuímos um Brasil continental.
Marina se adiantou, dizendo:
─ Não podemos nos esquecer dos corsários e piratas que por aqui passaram. Bons ou maus eles fizeram história e enriqueceram muitos reinados da Europa do século XV ao XVIII. Existem histórias de piratas honestos, incompreendidos pela sociedade daquela época. No entanto, a grande maioria era formada por  homens rudes e perversos.
─ Não acredito em honestidade de pirata, mas nada é impossível, quem sabe, nós possamos encontrar algum que venha nos mostrar um tesouro escondido nesse imenso mar, disse Vitor.
─ Massumi convidou os passageiros para o jantar, e dirigindo-se a Vitor, comentou:
─  Lagosta ao molho de camarão acompanhado com vinho italiano. Lembro-me que esse era o prato predileto do escritor Ernest Hemingway, grande admirador do mar caribenho.
─  Como você sabe disso?
─  Algumas pessoas conhecem seus hábitos em Havana, Califórnia, ou em outros lugares por onde ele passou especialmente na Espanha.
─ Foi um excelente escritor e consagrou-se com a obra, “o velho e o mar”.
Àquela noite parecia bem interessante, especialmente para as mulheres que estavam  alegres e falantes,  Laura queria saber se realmente as sereias existiam e perguntou ao Massumi:
─   Elas existem ou estão apenas em nossa imaginação?
─  Elas são parte dos encantos do mar e filhas de Iemanjá, a rainha do mar. Já foram vistas por muitos navegantes que contam histórias de homens encantados por sereias.  Muitas mulheres pedem a Iemanjá que devolva seus homens que as sereias levaram. Elas até fazem oferendas à rainha do mar na esperança de os receberem de volta. Existem tristes canções que em forma de poesias relatam esses acontecimentos expressando dor e sofrimento, mas também esperança daquelas mulheres que sonham com a volta de seus homens que Iemanjá levou para as profundezas encantadas do mar.

Muitas mulheres que tiveram seus homens encantados e tragados pelo oceano nas noites de mar agitado choram em tristes lamentos ao enxergarem seus maridos passeando sobre as ondas, acompanhados por lindas sereias. As sereias pensam que todos os homens lhes pertencem e assim têm muitos deles em suas companhias, especialmente os mais formosos. As sereias trazem encanto, beleza e alegria, mas em algumas aparições, levam dor e sofrimento, para quem nelas acredita. Elas existem, sim, pelo menos em nossos sonhos embalados pelos mistérios e segredos do mar. Quem tem forte ligação com o mar pode penetrar na mesma frequência e em suas águas mergulhar nos seus encantos, concluiu Massumi.