Misteriosa Corrida
Cavalos-marinhos em disparada deslocavam-se com elegância
e ligeireza sobre ondas gigantes e tempestuosas num mar revolto. O vento
soprava em direções contrárias formando imensos redemoinhos. Relâmpagos e trovões
rasgavam o céu em parte encoberto por nuvens escuras mostrando acima delas,
estrelas brilhantes num espetáculo amedrontador, mas de grande beleza.
─ Para que pressa! O mar pode conduzi-los, é só deixar-se
levar pelo movimento das ondas. Vitor falava para si.
Os belos e indomáveis cavalos a cada instante sobrepunham-se
às ondas com extrema leveza prosseguindo sua estranha corrida. No cume duma gigantesca
onda Massumi gesticulava e, gritando afirmava que o mercado de ações havia despencado e que as pessoas tivessem
cuidado com investimentos financeiros.
A Lua escondia-se atrás das imensas nuvens sobre a Baía de Guanabara.
O mar agitado anunciava chuva ao
amanhecer. Vitor consultou o relógio; eram três horas da manhã e havia perdido
o sono, precisava falar com Laura, chamou-a pelo telefone, ela não atendeu; certamente
àquela hora dormia. Laura havia tido um dia árduo de trabalho na banca de
advocacia na cidade de São Paulo, junto com seus sócios, Garcia e Marina. Impressionado, Vitor se lembrava do estranho sonho
onde Massumi fazia referência ao mercado financeiro, pois essa não era sua atividade.
Em suas viagens
ao mar, Vitor também se fazia acompanhar por Gonzalez, comandante habilidoso e experiente, sempre disponível para velejar em
companhia do seu bom amigo. Navegando, Vitor gostava do silêncio do mar; no
horizonte enxergar o mar beijando o céu, o nascer e o pôr do sol e escutar o
suave marulho das ondas no casco da embarcação. À noite precisava de alguém
para conversar e ouvir histórias, e, aí Gonzalez contava suas aventuras nas
longas viagens por diferentes oceanos, algumas vezes em companhia de Vitor que
também recordava de inauditos acontecimentos nas viagens pelo mar.
O telefone chamou. Era Laura.
─ Encontrei
uma chamada sua! O que aconteceu?
─ Não consegui dormir, precisava lhe falar, tive
novamente aquele sonho.
Que sonho?
─ O sonho da corrida de cavalos em alto-mar.
─ Novamente? Indagou Laura.
─ Sim.
─ Acho que você está ficando doido.
─ Doido por você.
─ Massumi apareceu no sonho!
─ Ele também está doido.
─ Chega Vitor, vá dormir. Bons sonhos. Logo estarei
com você.
─ Cavalos em alto-mar! Sonhos... Era só o que me
faltava! Disse Laura...
Vitor voltou para a cama, não conseguiu dormir e pensou
em ler a Divina Comédia.
─ Aí sim, dormirei, pensou.
Não dormiu, se perguntando em silêncio!
─ Será que Dante Alighieri tinha insônia?
─ Não. Provavelmente era doido igualzinho a mim.
─ Será que Laura tem razão e eu sou doido mesmo?
Ficou a pensar e dormiu.
Ao surgirem os primeiros raios de luz, levantou-se e
foi ver o esplendor do sol nascer. Gaivotas sobrevoavam o mar. Navios rumavam
para o oceano e Vitor imaginou para onde iriam! Sentiu saudade de suas longas
viagens. Vitorioso nos negócios, nem tanto no amor. Após um divórcio de um
casamento de dezessete anos ficou só. Sentia
solidão e o mar era seu refúgio. Tinha dois filhos, um casal de jovens que
vivia com Raquel, sua ex-esposa e boa amiga. Embora, com eles tivesse um bom relacionamento,
sentia solidão morando sozinho num apartamento na Avenida Atlântica em
Copacabana.
Nos últimos anos Vitor limitava suas excursões pelo
mar do Nordeste e sul do Brasil e raramente chegava ao Uruguai ou a Argentina.
Em Santos no litoral paulista, numa dessas viagens conheceu Laura, uma mulher
encantadora, e também, qual ele, fascinada pelo mar. Juntos planejavam fazer uma
longa viagem pelo Caribe no seu veleiro, carinhosamente chamado de Caranguejo.
O telefone chamou; era Laura.
─ Vitor, eu ainda estou no escritório, somente chegarei
amanhã às nove.
─ Sim, que jeito!
Mesmo a contra gosto, buscava a conformação. O que
fazer! Ela tinha razão, primeiro o trabalho.
O eterno clarão do sol brilhava sobre o mar, num céu
azul sem nuvens. A claridade penetrava por entre as frestas da cortina. Vitor
acordou sentindo um cheirinho de café. Levantou-se e deparou-se com Laura.
─ Vitor, você
dorme muito, cheguei as nove e, já são onze horas.
─ Abraçaram-se
entre murmúrios.
─ Preparei um
bom café.
─ Mas já está na hora do almoço!
─ Vamos
tomar café, e depois almoçaremos no bodegão. Quero comer frutos do mar.
─ Tudo bem. As mulheres são mandonas.
─ O que você está falando?
─ Que você é linda...
─ Ah, sim.
─ Garcia e Marina vieram ao Rio só para lhe ver. Querem
tratar de negócios e acham que chegou o momento de fazermos aquela sonhada
viagem ao Caribe em seu veleiro.
─ Não vou, disse Vitor.
─ Não seja radical. Eles são fascinados pelo mar, bons amigos e companheiros de vigem. Ouça-os
primeiro!
─ Garcia está
doido, como vou poder sair do Rio, em férias?
─ Você anda sonhando muito. Isso não é um bom sinal.
─ É um bom sinal sim, o sonho é a força mágica da
vida.
─ Concordo, mas pense no assunto.
─ Você sabe como é complicado eu sair de férias.
─ Eu sei, mas converse com eles. Marina quer ir junto.
─ Eu também quero ir, quem sabe faremos um bom
passeio!
─ Em sua companhia já dá para pensar no assunto.
─ Então vamos ver, eles são excelentes pessoas. Vamos
pensar! Podemos tirar umas boas férias viajando juntos.
─ Já estou achando uma boa ideia.
─ Tem uma caixa de vinho na adega, veja se gosta. Cuidado,
não beba todo de uma só vez...
─ Não sou pinguço, mas gostei do presente.
─ Então vamos juntos pensar no assunto?
─ Sim.
─ Garcia e Marina preferem viajar com poucos amigos,
mas que sejam de confiança.
─ Eles têm razão.
Os casais encontraram-se para o almoço. Era domingo e
foram ao restaurante Fígaro na lagoa e aproveitaram para falar sobre a viagem.
─ Vamos aproveitar o período mais quente do ano, será
bom para todos, disse Garcia.
Não posso ficar dois meses fora do Rio de Janeiro,
vocês bem sabem, disse Vitor.
─ Você pode administrar seus negócios de dentro do
caranguejo, pois foi para isso que o equipou.
─ É verdade,
disse Vitor.
─ Se não der certo, voltaremos em menos de dois meses.
─ Concordo, no entanto precisamos fazer um bom planejamento.
Duas pessoas são indispensáveis nessa viagem, disse
Marina.
Quem? Indagou Vitor.
─ Massumi e o capitão González.
─ Concordo, vou convidá-los, mas não quero saber de
trabalho, especialmente a bordo do Caranguejo, pois ele é um espaço de lazer, disse
Vitor.
─ Tudo bem comandante, você é quem manda, sorrindo
respondeu Marina.
A viagem teria início em primeiro de fevereiro
partindo do Rio de Janeiro com destino ao mar do Caribe. Visitariam Cuba, Colômbia e Venezuela, retornando ao
Brasil pela foz do rio Amazonas até a cidade de Manaus de onde alguns voltariam
de avião para o Rio de Janeiro, e o capitão González conduziria o Caranguejo ao
porto de origem. Alguns detalhes seriam lembrados nos dias seguintes, e durante
a travessia que se estenderia por até sessenta dias.
Com ampla experiência em viagens marítimas, Vitor havia
feito aquela rota diversas vezes e, embora estivesse afastado havia alguns anos quando deixou o barco no estaleiro,
não se distanciou da navegação. Há
muitos anos González era seu imediato, também fascinado pelo mar, sentia-se mais
seguro embarcado do que em terra, conhecia as rotas marítimas havia mais de
trinta anos e possuía experiência no mar do Caribe e nas Américas, onde
enfrentou baixas temperaturas no Canadá e ciclones no oceano pacífico.
Massumi gostava de aventuras especialmente no mar. Nessa
viagem seria responsável pela alimentação e bebidas, tarefa que desempenhava
com imenso prazer. Laura gostava de histórias do mar, especialmente do Caribe. Era neta de espanhóis que imigraram
para o Brasil na década de quarenta. Laura Era decidida, boa advogada e também fascinada
pelo mar, a bordo de uma embarcação sentia-se em casa. Laura pensava escrever
um livro relatando experiências em viagens anteriores por alguns continentes.
─ Em sete dias estaremos preparados para a viagem, afiançou
Vitor.
Após uma semana trabalhando nos preparativos, no dia
que antecedeu a viagem, logo cedinho o grupo se reuniu a bordo. Aquele dia
serviria para examinarem a estrutura de muitas coisas que faziam parte daquele
cruzeiro; combustível, mantimentos, bebidas e tantos outros acessórios, sendo
que cada um cuidava do setor pelo qual ficara responsável, porque todos eles
eram passageiros e tripulantes.
Zarparam às
seis horas numa linda manhã de sol contemplando a cidade maravilhosa. Com desenvoltura e determinação o capitão
González segurava o leme e com habilidade comandava o Caranguejo.
─ Ele é um mestre nesse ofício e dirigindo-se ao
capitão disse:
─ Velejaremos a noite em baixa velocidade porque não
temos pressa. Massumi está preparando lagosta ao molho não sei de quê, é
surpresa, peço que todos estejam à mesa na hora do jantar, será nossa primeira refeição
nessa viagem. À noite, após o jantar haverá festa a bordo.
─ Certamente que sim, já vamos começar os
preparativos, respondeu o capitão.
─ Quando chegarmos a Havana, vou me esbaldar,
dançando salsa e bebendo rum jamaicano, vou parecer até um pirata ou corsário da perna de pau, disse Garcia.
O entardecer em alto-mar é de uma beleza inefável, o
sol se pondo com seus raios cor de fogo brilhando no céu e sua luz refletida na
água. No horizonte infinito se forma um belo cenário qual uma tela pintada pela
própria natureza. Diante de tanta grandeza, é quando nos sentimos do tamanho de um grão de mostarda. O imponente veleiro
navegava sobre um mar sereno quando Massumi veio comunicar que o jantar seria
servido em meia hora.
─ Não consigo imaginar como seria essa viagem sem o Massumi!
Disse Vitor.
─ É verdade, sou muito bom no que faço.
Sorrindo
Massumi dirigiu-se a adega e voltou com
uma garrafa na mão.
─ Esse camarada chinês quer nos embriagar, disse
Garcia.
─ Não sou chinês, sou brasileiro, paulista, nascido em
Perdizes, com muita satisfação.
Os dois abraçaram-se sorrindo. A viagem estava
começando num clima de muita alegria.
─ González veio juntar-se ao grupo e avisar que havia
automatizado o barco, agora navegava controlado pelo sistema automático de
última geração que permitia a ausência do capitão na sala de comando.
─ Veja que maravilha a nova tecnologia, viajamos com
toda segurança. Há alguns séculos os navios navegavam por estes mares guiados
pelas estrelas e instrumentos rudimentares. Os espanhóis e portugueses, entre
outros eram grandes navegadores, disse Garcia.
─ Nós, brasileiros devemos muito aos portugueses, pois
com muita sabedoria e coragem desbravaram um imenso território formando o
Brasil e, parabéns a nós também que o conservamos, embora tenhamos doado uma grande
área de terra para os ingleses; a Guiana que outrora era nosso território. Nunca
deveríamos ter cedido parte do nosso Brasil, poderíamos ter tido mais cautela especialmente com os
colonizadores ingleses, sempre ávidos pela terra dos outros, além das suas
fronteiras, mas mesmo assim possuímos um
Brasil continental.
Marina se adiantou, dizendo:
─ Não podemos nos esquecer dos corsários e piratas
que por aqui passaram. Bons ou maus eles fizeram história e enriqueceram muitos
reinados da Europa do século XV ao XVIII. Existem histórias de piratas
honestos, incompreendidos pela sociedade daquela época. No entanto, a grande
maioria era formada por homens rudes e
perversos.
─ Não acredito em honestidade de pirata, mas nada é
impossível, quem sabe, nós possamos encontrar algum que venha nos mostrar um
tesouro escondido nesse imenso mar, disse Vitor.
─ Massumi convidou os passageiros para o jantar, e
dirigindo-se a Vitor, comentou:
─ Lagosta ao
molho de camarão acompanhado com vinho italiano. Lembro-me que esse era o prato
predileto do escritor Ernest Hemingway, grande admirador do mar caribenho.
─ Como você
sabe disso?
─ Algumas
pessoas conhecem seus hábitos em Havana, Califórnia, ou em outros lugares por
onde ele passou especialmente na Espanha.
─ Foi um excelente escritor e consagrou-se com a
obra, “o velho e o mar”.
Àquela noite parecia bem interessante, especialmente
para as mulheres que estavam alegres e
falantes, Laura queria saber se
realmente as sereias existiam e perguntou ao Massumi:
─ Elas
existem ou estão apenas em nossa imaginação?
─ Elas são parte
dos encantos do mar e filhas de Iemanjá, a rainha do mar. Já foram vistas por
muitos navegantes que contam histórias de homens encantados por sereias. Muitas mulheres pedem a Iemanjá que devolva
seus homens que as sereias levaram. Elas até fazem oferendas à rainha do mar na
esperança de os receberem de volta. Existem tristes canções que em forma de
poesias relatam esses acontecimentos expressando dor e sofrimento, mas também
esperança daquelas mulheres que sonham com a volta de seus homens que Iemanjá levou
para as profundezas encantadas do mar.
Muitas mulheres que tiveram seus homens encantados e
tragados pelo oceano nas noites de mar agitado choram em tristes lamentos ao
enxergarem seus maridos passeando sobre as ondas, acompanhados por lindas
sereias. As sereias pensam que todos os homens lhes pertencem e assim têm
muitos deles em suas companhias, especialmente os mais formosos. As sereias
trazem encanto, beleza e alegria, mas em algumas aparições, levam dor e
sofrimento, para quem nelas acredita. Elas existem, sim, pelo menos em nossos
sonhos embalados pelos mistérios e segredos do mar. Quem tem forte ligação com
o mar pode penetrar na mesma frequência e em suas águas mergulhar nos seus
encantos, concluiu Massumi.