quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Maité

Passava das quatro horas, ainda escuro, eu caminhava protegido pelas marquises dos velhos casarões da cidade histórica da velha Manaus. Cidade marcada pelos prédios antigos do século 19, tempo áureo da borracha. Mesmo sob as marquises minha roupa encharcava pela torrencial chuva. Tinha pressa, queria chegar ao histórico Mercado Adolpho Lisboa, símbolo de uma época de progresso. Na escadaria que dá acesso ao porto ouvia a voz forte dos barqueiros oferecendo bilhetes de viagem para os mais diversos lugares da região. Diante de muita agitação ainda não sabia para onde viajaria, mas estava decidido, pretendia me afastar da cidade grande. Há muito eu sentia a necessidade de me isolar por algum tempo num lugar tranquilo onde eu pudesse pensar distante da cidade com seus problemas inerentes a lugares apinhados de pessoas. Lia-se numa placa de papelão; barcos para o baixo Amazonas, Solimões, Rio Negro e outros nomes especificando lugares. A que horas sai o barco para Barcelos? Perguntei. — Sete horas, respondeu um moço segurando um papel. Seis horas algumas redes estavam atadas no espaçoso convés da embarcação. Agasalhei minhas coisas embaixo da rede, escolhi para a leitura na viagem um livro de Saramago, “Cain”, então eu pensei; vou ler e entender a razão de tanta confusão por causa dessa obra que culminou com ida do mestre Saramago para a Espanha. O barco navegava nas águas do Rio Negro e a brisa fresca da manhã acarinhava meu rosto assustado pela aventura que se iniciava naquele sábado. Deitado na rede contemplava a margem do rio e o distanciamento da cidade, sentindo que deixava algo importante para trás. Creio ser esse o sentimento de todas as pessoas que deixam a cidade e são acolhidas pelas águas, florestas e também pela linguagem cabocla que nos aproxima da natureza nos tornando simples e solidários. Naquele momento eu tinha um turbilhão de pensamentos, porém o mais importante era a viagem que me trazia um sentimento prazeroso de liberdade. Queria aproveitar a paisagem da floresta, o movimento das águas, a revoada dos passarinhos, conhecer algumas espécies de peixes, pássaros, macacos e tradições ribeirinhas. Desliguei-me da cidade penetrando num sonho encantado da floresta. Ao meu lado numa rede amarela viajava uma bela jovem índia de fulgurante boniteza que chamou minha atenção. Ela me olhou com um sorriso encantador, àquele sorriso revelou uma criatura extraordinária, uma energia que me fez pensar na natureza e seus encantos, seu olhar desnudava seu ser. — Bom dia, alegremente disse a moça. Bom dia, vamos fazer uma boa viagem à Barcelos, respondi. — Sim, porém, desembarco antes de chegar à cidade para visitarei uma nação indígena, lá participarei de uma celebração. Se você estiver disposto a caminhar e quiser me acompanhar, podemos ir juntos. Ao regressarmos embarcaremos nesse mesmo barco de volta à Manaus, concluiu. Vou pensar, acho a ideia interessante, mas nem sei o seu nome? — Meu nome é Maité. Essa palavra vem do Nheengatú, meus ancestrais falavam esse idioma que até nos dias atuais é falado por algumas nações indígenas da Amazônia, concluiu. Então, juntos pela floresta podemos viajar à sua comunidade. Quero muito conhecer essa nação. O barco abarrancou, descemos e permanecemos olhando o barco se afastar até desaparecer numa curva do rio. Tão curta a viagem e já sentia saudade do aconchego no convés da embarcação. ─ Agora sim, podemos caminhar até chegarmos à nação indígena. Prepare-se para uma grande surpresa, disse a bela jovem. Que surpresa, disse eu. ─ Boa. Se revelasse não seria surpresa, sorrindo respondeu Maité. Seguimos por uma trilha, Maité caminhava à frente irradiando beleza e sensualidade o movimento dos seus quadris lembravam o bambolear do voo de um gavião. Ela conhecia a floresta e caminhava com estrema leveza, parecia não tocar nas folhas espelhadas pela terra. Paramos por algum instante e ela chamou minha atenção para uns pássaros que pousavam no alto das árvores. —Alguns desses pássaros já estão em extinção em decorrência da falta de sensibilidade ecológica dos homens, falou Maité. Nossa caminhada continuou floresta adentro, me sentia leve como o pousar de uma andorinha, nenhum pensamento me conduzia à cidade grande. Fazíamos algumas rápidas paradas para comentar algumas coisas da natureza, e ela tinha sempre algo a me ensinar. Sentamos-nos a beira de um igapó entre as sororocas, ouvindo o rumor da água a mimar os peixinhos coloridos num encantamento que só a floresta nos trás. Um bem-te-vi cantava anunciando nossa presença, a tarde caia mansa e serena, por um longo tempo permanecemos em silêncio. No céu as estrelas brilhavam, era noite. A brisa suave enxugava meu rosto e conduzia meus pensamentos para um mundo encantado num clarão eterno de luz fecunda da lua movedora. Com uma voz branda e meiga como se ecoasse pelo universo Maité pediu-me para fechar os olhos e enxergar com a mente. Num vale rico de encantamento e beleza num ritual de cânticos de alegria, milhares de pessoas reverenciavam a grande rainha daquele povo. Tratava-se de uma grande nação, uma antiquíssima civilização que ali existiu a mais de seis mil anos, deixando de existir na dimensão material. No centro do vale uma formosa cachoeira transformou-se num belíssimo arco-íris, entre as cores enxerguei uma linda imagem de mulher, Maité. Uma radiante manhã surgiu com um sorriso de alegria. Nem percebi o tempo passar na noite. Maité sorria e eu sentindo um clarão dentro da alma caminhei na direção do Rio Negro. Maité seguia meus passos voltando à cidade, tinha os olhos embaçados de sonhos, com o coração banhado de luz e encantamento, na certeza que nem tudo é matéria densa como pensamos, entre a terra e o céu existem infinitos mistérios e moradas de Deus. </i>

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