Pedro
se despedia do Nordeste, sabendo que em breve a empresa para a qual trabalhava
iria mandá-lo para o Norte em busca de novos negócios, e assim também
realizaria seu grande sonho, conhecer o Norte do Brasil, imensa e exuberante
região coberta de florestas e água. Enquanto isso iniciava, no sul do Piauí,
uma viagem procurando chegar a uma cidade no sertão pernambucano que atravessaria
uma região deserta, com estradas ruins e alto índice de assaltos. Pedro
abasteceu o carro com um tanque sobressalente e alguma alimentação: pão, azeite,
mel de abelha e água potável. Pedro estaria viajando sozinho pelo menos por
doze horas e estando se despedindo, essa
viagem tornara-se histórica e inesquecível. Nessa viagem surgiriam
acontecimentos marcantes que transformariam profundamente sua vida.
Aproveitou o frescor da manhã e às seis horas
estava na estrada dirigindo em baixa velocidade para melhor segurança e também gravar
na memória a paisagem do sertão. Eram onze horas, e sob o brando sol da manhã
parou em uma elevação e ali permaneceu por alguns minutos, observando a estrada
gretada e a terra seca do sertão, imaginando como uma pessoa poderia viver
naquele árido lugar. Distante enxergou uma árvore verde e frondosa, tratava-se
de um juazeiro que possui raízes profundas que chucham água nas profundezas dos
leitos secos dos rios. Muito além, uma revoada de pássaros, voando em perfeita
formação, certamente buscando água. No sertão é assim, sempre se busca uma
fonte. Pedro ainda não sabia a razão de tanto amor que sentia pelo sertão, esquecido
por alguns. Seguiu viagem e, na solidão, ligou o rádio para escutar alguma
notícia. Ao sintonizar a rádio, o locutor falava de crises econômicas, maus
políticos, de comunistas que queriam tomar o poder, enfim, coisas banais que
ainda hoje se escutam nesse País de extraordinária beleza. Desligou o rádio e
em silêncio imaginou, onde estaria dali a cinquenta anos. Lembrou-se de um
grande amor que apesar de não dizer, seu espírito o escondia, o abrigava e o
fazia sofrer, lembrando que toda felicidade é passageira, mas a saudade dura à
vida inteira. Pedro sonhava que um dia poderia estudar em uma faculdade, e
formar-se doutor, quais os filhos do coronel João Rodrigues e, mesmo absorto em
pensamentos, percebeu uma falha no motor do carro. Parou e examinou o que teria
acontecido. Não descobriu o defeito, até porque nada entendia de mecânica de
carro. Horas depois, cansado e quase sem esperanças de sair dali, observou que
bem perto, a cem metros, havia uma casinha que mais parecia um pombal. Ainda
era manhã num dia banhado de sol. A acauã piava bem perto e a cigarra cantando
anunciava mais um dia sem chuva, a beira da estrada árvores secas e retorcidas
abrigavam pequenos calangos que buliam nas folhas mortas pelo calor. O Jipe
estava num declive e, empurrando estacionou em frente casa, buzinou, gritou, mas, ninguém atendeu e
quando havia desistido avistou na pequena varanda da casa, um homem se
embalando numa rede. Pedro achou estranho não tê-lo visto antes, mas o
cumprimentou dizendo: — Você estava aqui e eu nem vi. — É eu estava aqui, afinal, todo
lugar é aqui, respondeu o
homem. Juntos riram muito e o simpático homem se apresentou dizendo chamar-se
Bento. Pedro foi convidado a pernoitar na casa de Bento. Aceitou prontamente,
pois aquela região era perigosa
para viajar à noite e além de tudo o carro não estava em boas condições. Bento
foi à cozinha e Pedro permaneceu na varanda de onde ouvia Bento falar: — Faz
muito tempo que não chove por aqui. Ainda hoje preciso alimentar as cabras com
canafístula. É uma boa ração e faz aumentar o leite. Tem água aí no pote, se
quiser, pode beber. Você gosta de mel de abelhas? — Sim, gosto muito! —
respondeu Pedro. Parecia que se conheciam havia muito tempo. Pedro sentia
grande alegria em falar com Bento, que conhecera há alguns minutos. A voz
branda e pausada daquele homem transmitia paz e harmonia trazendo uma impressão
indizível de felicidade e paciência. Pedro achava-o diferente de todos os
homens que conhecera. A casa refletia a ele mesmo, muito simples e Pedro não
conseguia entender porque antes não havia visto aquela casa e seu morador. As
paredes de barro, rachadas indicavam ser uma construção muito antiga. O teto
era de palha de carnaúba e tinha três cômodos: sala, quarto, cozinha e uma
pequena varanda. Em cada compartimento cabia no máximo três pessoas. As portas
sem trinco feitas de cipó e palha, o piso de chão batido. Fora da casa existiam
dois pés de bouganviles com flores brancas e vermelhas que, entrelaçados sobre
a casa, formavam uma paisagem luminosa, um quadro de indelével beleza. A uns cem metros, podia ver o
curral das cabras de onde se escutava o berro dos animais e sentir o cheiro
característico. Na varanda havia um pote de barro com água fresca e sobre ele
duas cuias utilizadas para beber água vinda de uma fonte no alto da montanha
que só Bento sabia como chegar lá. A mesa de jantar era uma tábua de aroeira
com duas cadeiras feitas de argila em forma de banco, tudo bem arrumadinho parecendo
que Pedro já era esperado. Na cozinha havia um fogão a lenha, panelinhas, pratos
e travessas. As colherinhas trabalhadas artesanalmente eram feitas de angico
branco, madeira nobre do sertão. Esses objetos, simples e singelos pareciam
feitos pela própria natureza.
Bento era um homem alto com pele queimada pelo
sol do sertão, vestia calça velha arregaçada até os joelhos, camisa xadrez com
alguns furos que permitia enxergar seu corpo negro e enrugado, característico
de quem em demasia se expõe ao sol, nos pés usava alpercatas de couro. Quando
Pedro perguntou sua idade, respondeu que era mais velho que a Terra. Tinha
semblante sereno transmitindo sossego e propagando pura energia, sorriso de
criança e uma barba longa e alva qual a flor do algodão. No poente despedia-se
a tarde dourada. Sentaram-se à mesa, para o jantar. Em pratinhos de barro, foi
servido: queijo, canja, coalhada e mel de abelha jandaíra. A canja feita de
avoantes, aves que naquela estação do ano migram da África para o Nordeste
brasileiro para acasalamento e depois, as que o homem não come, voltam para lá.
Sorrindo comentava Bento. O mel era colhido ali bem próximo, só precisava saber
colher no tempo certo. No sertão é assim, só não tem tempo certo para a chuva.
A coalhada e o queijo eram feitos do leite das cabras que Bento criava. Num solene
movimento postaram as mãos, abaixaram a cabeça e permaneceram em silêncio como
que agradecendo a Deus pelo alimento recebido. Após o jantar sentaram-se no
terreiro em frente a casa sobre esteiras de palha de carnaúba. A noite chegou
suave tal um aroma e o silêncio desceu brando como o pouso de uma garça. O céu
apareceu atapetado de estrelas, a lua resplandecendo com fulgurante beleza. Pedro
contemplava o céu e Bento olhava-o com admiração. Pedro queria saber se Bento
estava feliz naquele lugar e Bento sorrindo, pediu para Pedro olhar o céu, as
estrelas, a lua, para sentir a força do Universo. Pedro com os olhos fixos no
céu sentiu vibrar seu corpo e viu uma grande luz a espargir-se sobre ele.
Sentiu-se viajando pelo espaço infinito sem perceber o peso do corpo,
sem ver passar o tempo. Momento de bem aventurança, de interação com a
natureza divina. Pedro contemplava Bento que se confundia com a claridade enxergando
sua imagem no Universo, sua figura humana se expandindo no céu sem fim,
enfeitado de astros e brilhantes estrelas. No céu surgiram dois homens de
inenarrável beleza, deram-se as mãos formando um grande círculo pelo céu conduzindo
Pedro às mansões do Universo, visitando astros e estrelas na órbita do sol e
muito além. Pedro sentiu-se pequeno e entendeu que também fazia parte do Todo.
Abriu
os olhos e a manhã despertava num sorriso de luz do sol, procurou o velho Bento
encontrando-o sorrindo. — Sim, sou feliz aqui nesse lugar, respondeu Bento. Pedro
refletia sobre a felicidade que enchia seu coração, sentindo-se próximo de
Deus. Não encontrou palavras para falar daquele momento, mas guardou para si o
que entendeu ser, um encontro com o Criador. Chegou o momento de despedir-se do
anfitrião, visto que Pedro precisava seguir viagem. Por longo tempo permaneceu
abraçado a Bento, sentindo o cheiro do homem do sertão, e naquele abraço o silêncio
dizia tudo. Pedro não queria viajar, dizer adeus, mas em silêncio entrou no
carro com os olhos molhados de lágrimas sentindo saudades. Permaneceu em
silêncio que é como melhor se chora, se ama e se fala ao coração. Sem explicação o carro não apresentou
defeito e Pedro prosseguiu viagem. Aquele inesperado encontro ficou marcado
para sempre em sua memória, ciente que não existe acaso, tudo é vida, mistério.
Véspera
de Natal, Pedro resolveu retornar em visita ao amigo Bento. Estava a mil
quilômetros de distância, mas agora, com um carro mais potente viajaria com mais segurança.
Atravessou o sertão com vontade de chegar e abraçar o velho Bento, quanto mais
se aproximava, mais alegria sentia, embora a estrada parecesse longa e
infindável. O que Pedro não havia perguntado ao velho Bento, agora queria indagar,
desejava abraçá-lo e dizer quanto o amava, respeitava e admirava, pois dele recebera
o maior ensinamento de sua vida, e dizer também que queria aprender muito mais
ensinamentos. A cada curva da estrada, parecia vê-lo acenando. Sentia alegria, imaginando
poder estar sentado a seu lado e, quem sabe, viajando outra vez pelo Universo.
Pensamentos voavam e, sentimentos de expectativa o afligiam quando finalmente
chegou ao tão esperado lugar, a casa do velho Bento. Olhou em volta, procurou a
casa e não encontrou nenhum vestígio que alguém tivesse morado ali. Levantou a
cabeça, olhou o tempo e escutou o silencio do Criador sentindo que Bento havia
deixado ali sua pura energia.
Quando se voltou enxergou os dois bouganviles
entrelaçados, floridos e acarinhados pelo vento suave e lembrou-se do abraço do
velho Bento Tocou nas flores quando murmuravam, olhou para o céu e voltou a
sentir um saudoso raio de alegria lembrando-se que o abraço do velho Bento se
eternizara. Tempos depois, numa tarde de céu azul ao sobrevoar o imenso sertão,
indo para o Norte do país imaginou o amigo acenando com os braços abertos, formando
uma estrela e sua voz ecoando no universo, dizendo: Todo lugar é aqui.
Fragmentos do livro “O mundo de Pedro”
Antonio de Albuquerque
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